quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

ainda do "nosso" poeta...

Lamento para a língua portuguesa

Não és mais do que as outras, mas és nossa, e crescemos em ti. Nem se imagina que alguma vez uma outra língua possa pôr-te incolor, ou inodora, insossa, ser remédio brutal, mera aspirina, ou tirar-nos de vez de alguma fossa, ou dar-nos vida nova e repentina.
Mas é o teu país que te destroça,
o teu próprio país quer-te esquecer
e a sua condição te contamina
e no seu dia-a-dia te assassina.
Mostras por ti o que lhe vais fazer:
vai-se por cá mingando e desistindo,
e desde ti nos deitas a perder
e fazes com que fuja o teu poder
enquanto o mundo vai de nós fugindo:
ruiu a casa que és do nosso ser
e este anda por isso desavindo
connosco, no sentir e no entender,
mas sem que a desavença nos importe
nós já falamos nem sequer fingindo
que só ruínas vamos repetindo.
talvez seja o processo ou o desnorte
que mostra como é realidade
a relação da língua com a morte,
o nó que faz com ela e que entrecorte
a corrente da vida na cidade.
Mais valia que fossem de outra sorte
em cada um a força da vontade
e tão filosofais melancolias
nessa escusada busca da verdade,
e que a ti nos prendesse melhor grade.
Bem que ao longo do tempo ensurdecias,
nublando-se entre nós os teus cristais,
e entre gentes remotas descobrias
o que não eram notas tropicais
mas coisas tuas que não tinhas mais,
perdidas no enredar das nossas vias
por desvairados, lúgubres sinais,
mísera sorte, estranha condição,
mas cá e lá do que eras tu te esvais,
por ser combate de armas desiguais.
Matam-te a casa, a escola, a profissão,
a técnica, a ciência, a propaganda,
o discurso político, a paixão
de estranhas novidades, a ciranda
de violência alvar que não abranda
entre rádios, jornais, televisão.

E toda a gente o diz, mesmo essa que anda por tal degradação tão mais feliz que o repete por luxo e não comanda, com o bafo de hienas dos covis, mais que uma vela vã nos ventos panda cheia do podre cheiro a que tresanda.

Foste memória, música e matriz
de um áspero combate: apreender
e dominar o mundo e as mais subtis
equações em que é igual a xis
qualquer das dimensões do conhecer,
dizer de amor e morte, e a quem quis
e soube utilizar-te, do viver,
do mais simples viver quotidiano,
de ilusões e silêncios, desengano,
sombras e luz, risadas e prazer
e dor e sofrimento, e de ano a ano,
passarem aves, ceifas, estações,
o trabalho, o sossego, o tempo insano
do sobressalto a vir a todo o pano,
e bonanças também e tais razões
que no mundo costumam suceder
e deslumbram na só variedade
de seu modo, lugar e qualidade,
e coisas certas, inexactidões,
venturas, infortúnios, cativeiros,
e paisagens e luas e monções,
e os caminhos da terra a percorrer,
e arados, atrelagens e veleiros,
pedacinhos de conchas, verde jade,
doces luminescências e luzeiros,
que podias dizer e desdizer
no teu corpo de tempo e liberdade.
Agora que és refugo e cicatriz
esperança nenhuma hás-de manter:
o teu próprio domínio foi proscrito,
laje de lousa gasta em que algum giz
se esborratou informe em borrões vis.
De assim acontecer, ficou-te o mito
de haver milhões que te uivam triunfantes na raiva e na oração, no amor, no grito de desespero, mas foi noutro atrito que tu partiste até as próprias jantes nos estradões da história: estava escrito que iam desconjuntar-te os teus falantes na terra em que nasceste, eu acredito que te fizeram avaria grossa.

Não rodarás nas rotas como dantes,
quer murmures, escrevas, fales, cantes,
mas apesar de tudo ainda és nossa,
e crescemos em ti. Nem imaginas
que alguma vez uma outra língua possa
pôr-te incolor, ou inodora, insossa,
ser remédio brutal, vãs aspirinas,
ou tirar-nos de vez de alguma fossa,
ou dar-nos vidas novas repentinas.
enredada em vilezas, ódios, troça,
no teu próprio país te contaminas
e é dele essa miséria que te roça.
Mas com o que te resta me iluminas.

in "Antologia dos Sessenta Anos

do poeta Vasco Graça Moura

O suporte da música

suporte da música pode ser a relação entre um homem e uma mulher, a pauta dos seus gestos tocando-se, ou dos seus olhares encontrando-se, ou das suas
vogais adivinhando-se abertas e recíprocas, ou dos seus obscuros sinais de entendimento, crescendo como trepadeiras entre eles.
Osuporte da música pode ser uma apetência
dos seus ouvidos e do olfacto, de tudo o que se ramifica entre os timbres, os perfumes, mas é também um ritmo interior, uma parcela do cosmos, e eles sabem-no, perpassando
por uns frágeis momentos, concentrado
num ponto minúsculo, intensamente luminoso, que a música, desvendando-se, desdobra, entre conhecimento e cúmplice harmonia.


in "Antologia dos Sessenta Anos"

mãos à obra - vem aí nova edição do programa "a poesia está na rua"

a nova edição está a ser preparada e o poeta Vasco Graça Moura dará um forte contributo para o sucesso da mesma...


Vasco Graça Moura celebra este ano cinquenta anos de vida literária.

Autor de uma obra literária de proporções homéricas, na poesia, na ficção, no teatro e no ensaio, tradutor de Dante, Shakespeare, Racine, Corneille, Rilke, etc.
Homem de vasta erudição, ocupou diversos cargos, tais como: Secretário de Estado em dois governos (1975-76), Director da RTP-2 (1978), Administrador da Imprensa Nacional (1979-89), Comissário-Geral de Portugal para a Exposição Universal de Sevilha (1988-92), Presidente da Comissão dos Descobrimentos Portugueses e Director da Revista Oceanos (1988-95), Director do Serviço de Bibliotecas e Apoio à Leitura da Fundação Calouste Gulbenkian (1996-99).
Eleito como independente nas listas do PSD, foi deputado ao Parlamento Europeu durante dez anos (1999-2009).
É, desde Janeiro de 2012, o novo Presidente do Centro Cultural de Belém.